Transexuais: será que o corpo humano mente?
Publicado em 2015-03-11 na categoria SexCult / Transexualidade


Apesar dos slogans ideológicos, a ciência afirma que a natureza humana exige coerência entre os genes e o sexo fisiológico. Assistimos a um experimento antropológico que se apoia na biotecnologia, com a pretensão de nos levar a um tipo de ser humano para o qual não existem sexos, apenas “papéis”, e segundo o qual a identidade sexual, ser homem ou mulher, é de livre escolha.

Mas isso significa que não é importante, ou inclusive não é necessária, a conexão psicológica entre “eu e o meu corpo”?
 
Vivemos uma crescente preocupação pela saúde, pelo bem-estar físico e pela aparência física. Mas isso significa que é possível compreender-mo-nos a nós mesmos, entender o que ocorre no nosso interior, à margem do próprio corpo?
 
Quando algo ou alguém nos afecta e desperta um sentimento, percebemos isso precisamente no corpo. O nosso corpo comunica isso com os outros e vice-versa. Será que nos podemos dar a entender e entender aos outros se criamos uma situação de desencontro entre o eu, a minha intimidade e o meu corpo?
 
Os conhecimentos actuais da biologia humana (especialmente os dados das neurociências) sobre a identidade sexual permitem-nos analisar com seriedade, sem preconceitos, sem juízos de valor de nenhum tipo e sem transfobias as consequências do afastamento do próprio corpo.
 
O sexo corporal é determinado pela herança biológica recebida dos pais.

Em primeiro lugar, pela diferente informação genética do par de cromossomos XX da mulher, ou XY do homem. Em segundo lugar, porque os padrões de feminilidade e masculinidade começam a funcionar ordenadamente por componentes específicos do cromossomo Y ou do par XX. A mesma herança genética (23 pares de cromossomos) está presente em todas as células do organismo.
 
Os genes das células que constituem os ovários ou testículos (que, por sua vez, geram as células de transmissão da vida, sejam femininas – óvulos – ou masculinas – espermatozoides), bem como as células que formam os genitais, e as células do cérebro, activam-se ou silenciam-se ao compasso das hormonas sexuais, cuja síntese é dirigida pela ausência de um cromossomo Y na mulher ou pela sua presença no homem.
 
Os órgãos da reprodução e o cérebro têm sexo. Só um corpo de mulher forma e amadurece óvulos, e só um corpo de homem produz espermatozoides. O estado do DNA dos óvulos é diferente do estado do material genético dos espermatozoides. Esse estado do DNA específico do sexo é um selo parental.

É bem conhecido que, para que um indivíduo viva e se desenvolva, é preciso que a dotação genética herdada, composta por 23 pares de cromossomos, tenha o selo materno em um dos cromossomos e cada par e o paterno no outro cromossomo.
 
Existe, nos primatas, uma barreira biológica por enquanto instransponível, que faz cair por terra a possibilidade de que um bebé nasça de um pai e sem mãe ou de uma mãe e sem pai. Pelo menos até agora (e não parece ser de outra forma), cada pessoa humana precisa ser filho(a) de um e de outro.

Por enquanto, e possivelmente para sempre, a ideia de uma reprodução assexuada, natural ou artificial, ou por manipulação dos óvulos e espermatozoides, não passa de ficção. A biotecnologia não conseguiu ultrapassar os limites da biologia.
 
A produção artificial de óvulos ou espermas a partir de células-tronco imaturas de uma mulher ou homem não deu resultados, pelo menos por enquanto. A reprodução artificial exige doadores humanos em cujo corpo se formara os gametas (óvulos ou espermatozoides), ou seus precursores.
 
É possível que a biotecnologia não veja necessidade de que se formem no corpo de uma mulher ou de um homem, respectivamente. Mas nem por isso deixaria de ser muito significativo humanamente o facto de que a identidade própria de cada pessoa é dada necessariamente pelo seu pai e pela sua mãe “biológicos”.

É possível tecnicamente armazenar gametas e fecundá-los, mas a herança genética tem a sua história, vem de um tronco familiar, com as suas predisposições, a sua propensão a determinadas doenças, além da sua etnia e as características dos rostos etc. Daí que cada pessoa tenha direito de saber de quem ela procede, e com isso, qual é a sua identidade biológica.
 
A identidade sexual faz parte da identidade biológica de cada pessoa. O “eu” somatiza-se no corpo, que é sexuado. O sexo cerebral, psicológico, coincide com o corporal, e dá lugar a uma ampla margem de estilos de homens e mulheres. O cérebro tem sexo.
 
Isso não supõe ignorar que existem pessoas transexuais, que se sentem do sexo oposto ao do seu corpo, nem ignorar que existem pessoas com um transtorno do desenvolvimento gonadal, que apresentam ambiguidade nas estruturas gonadais e nos genitais.
 
Hoje sabemos que a causa de ambas as condições é genética. A alteração de um ou mais genes traz deficiência de alguma das enzimas ligadas ao metabolismo das hormonas sexuais e, com isso, déficit ou excesso na acção que estes exercem sobre a regulação de outros genes.
 
Durante a fase pré-natal, os genes dos cromossomos sexuais estabelecem as estruturas dos testículos e dos ovários fetais fabricados pelas hormonas. Também o cérebro recebe e metaboliza as hormonas, em momentos adequados e diferentes dos da consolidação das gônadas. Mantém um equilíbrio hormonal que traça as linhas centrais do padrão cerebral feminino ou masculino.

Ao contrário de qualquer outro órgão, o cérebro é plástico a vida inteira. Ele estrutura-se e funciona a partir das hormonas em algumas fases iniciais da vida, e sobretudo a partir de vivências, experiências, adições e decisões. A acção das hormonas é especialmente intensa na infância e na puberdade.
 
É possível afirmar que a acção directa das hormonas sexuais sobre o cérebro é um factor crucial no desenvolvimento da identidade de gênero (masculina ou feminina). Não obstante, não é suficiente. De facto, há diferenças na sensibilidade dos andrógenos, há diferentes níveis hormonais e dos receptores, que as captam para que exerçam a sua acção específica nas células, tanto dos órgãos reprodutivos quanto do cérebro.
 
Por isso, existem pessoas transexuais às quais o seu corpo não diz o mesmo que seu “eu”. E existem pessoas (antigamente conhecidas como hermafroditas) cujo corpo lhes transmite uma mensagem ambígua, por sofrer um transtorno do desenvolvimento do óvulo/testículo.
 
Os conhecimentos actuais apontam, no caso da transexualidade, para uma disfunção na percepção cerebral do próprio corpo, que não é uma simples questão de preferência dependente do ambiente social ou da aprendizagem. Por isso, a pesquisa biomédica questiona a hipótese de que a harmonia entre a psique e a corporeidade seja alcançada com intervenções cirúrgicas e tratamentos hormonais que mudam o sexo genital e as características sexuais secundárias e, por sua vez, afectam o cérebro.
 
As pessoas com transtorno genético de desenvolvimento gonadal têm estruturas corporais com ambiguidade sexual, sem efeitos cerebrais. Os meninos que nascem genética e hormonalmente como homens se identificam desde a infância como homens, apesar de terem sido, muitas vezes, criados e educados como mulheres, e inclusive se submetido a uma cirurgia no nascimento.
 
Por outro lado, as meninas submetidas a altos níveis de andrógenos na etapa pré-natal têm genitais masculinizados e, só em casos extremos, apresentam transexualidade. Hoje, podemos saber o que causou a ambiguidade gonadal e educá-la como é na realidade. A época de dúvida de que fosse menina já passou, felizmente.

É um princípio geral que o corpo humano não mente, e sempre avisa sobre o que acontece. Pelo contrário, o cérebro pode errar nas suas percepções. Mas, ainda assim, tudo o que acontece na psique, o corpo somatiza. A informação sobre os progressos da neuroendocrinologia e da neuroimagem, neste campo, precisa ser divulgada, e deveria ser levada em consideração na educação das novas gerações.

Os slogans do tipo “não existem sexos, só papéis sexuais”, impostos desde a infância, não reconhecem o que a ciência revela: a natureza humana exige coerência nos níveis genético e gonadal, porque o “eu” é somatizado num corpo que é sexuado.
 
Há pouco mais de uma década, este slogan tornou-se num ícone da modernidade, e alguns defendem que esta perspectiva precisa ser aceita e transmitida desde a infância. A ideia de fundo é livrar-se das exigências do próprio corpo, ser autónomo e autoconstruir-se. O sexo – segundo esta perspectiva – não é outra coisa a não ser uma função fisiológica (que só oferece ser homem ou mulher como únicas possibilidades), enquanto o género se refere às preferências, e estas são realidades sociais sujeitas a mudanças.
 
No entanto, assim como a igualdade de direitos da mulher com relação ao homem é uma questão social, cultural e jurídica, a superação dos sexos exige a intervenção da biotecnologia. Trata-se de realizar uma revolução da humanidade oposta aos processos da evolução biológica. Daí que haja uma forte brecha na abordagem deste experimento sobre a identidade de género. A biologia humana, que não é mera zoologia, manifesta a especificidade de um ser vivo cultural.
 
No entanto, a biologia não é cultura e não muda facilmente, a não ser pagando um preço bem alto. É a pessoa, cada um dos homens e mulheres, quem é um ser vivo cultural. O protocolo deste experimento requer passar pelo tribunal da ciência.

O que supõe contrapor em uma pessoa o sexo biológico e o psicológico e social? O que é inato nisso? O que é cultural? O que a biotecnologia oferece, de facto, à mudança de sexo? Há garantia de sucesso?
 
E se, no final, o experimento não for válido? Como paliaríamos as consequências nas possíveis vítimas às quais não se deu a opção de escolher participar ou não no experimento?
 
Publicado em Cuad. Bioética XXIII, 2012/2ª

 
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